São Silvestre integral
Semana passada escrevi na Folha sobre a São Silvestre. Escrevi mais do que deveria, culpa minha. Não coube no papel. Aqui cabe. Mais tarde falo sobre o que se confirmou no dia da corrida e sobre o ano que vem. Lá vai o texto integral…
“A São Silvestre mudou. A largada da prova avançou 150 metros pela Avenida Paulista e acontecerá entre as ruas Augusta e Padre João Manuel. A ideia da organização é evitar que os 30 mil inscritos recebam a indesejável companhia dos “pipocas”, os penetras que pulam as grades e correm ao lado de quem pagou os 170 reais pelo kit da corrida. Com o novo ponto de largada, mais próximo ao túnel José Roberto Fanganiello Melhem, os organizadores imaginam que dificultarão a ação dos intrusos. “Era na entrada do buraco da Paulista que muita gente invadia a prova, agora teremos uma fiscalização mais forte no local. No ano passado, foi um recorde, calculamos algo entre 10 a 15 mil ‘pipocas’ roubando o espaço e a água de quem se inscreveu corretamente”, diz Marcelo Braga, assessor de imprensa da prova.
O problema da falta de água no ano passado gerou até a criação de um grupo de Facebook chamado “São Silvestre Corrida Desorganizada” que reune 296 corredores. “Criei o grupo porque todo ano tinha protesto e faltava concentrar reclamações sugestões”, diz o corredor Antonio Muk. “Vi várias pessoas passando mal ao longo da prova no ano passado. Já estava faltando água no quilômetro 5, isso é absurdo”, protesta Emerson Araújo Alves. Para Alan Fernandes, que participava pela sexta vez do evento, a edição 2016 foi a pior de todas. A organização justificou a falha pela presença forte dos “pipocas”. Os 450 mil copos de água não tiveram a velocidade necessária de reposição nos postos e esse ano o número foi reforçado para 750 mil copos.
Mesmo evitando o estouro dos pipocas em 2017, a organização não resolverá outro crônico problema da São Silvestre: a largada continuará a zona de sempre. Apenas o pelotão de elite e umas poucas centenas de atletas que se posicionam na Paulista horas antes na partida poderão dizer que correram, de fato, a São Silvestre. Os milhares demais vão caminhar espremidos nos primeiros quilômetros porque, como de hábito, a corrida congestiona. “Não tem jeito, 30 mil pessoas mais os penetras é gente demais”, afirma Braga.
A São Silvestre, de fato, é uma prova gigante, tem o mesmo número de inscritos que a Maratona de Boston. Mas em Boston não há registros de gente precisando caminhar na largada. Em Nova York, são 50 mil atletas que desenvolvem a velocidade que bem desejarem desde os primeiros metros. Não há mágica aí. Só é possível proporcionar conforto na partida se a largada acontecer em ondas. Em Boston, por exemplo, são quatro ondas de 7,5 mil corredores que ocorrem a cada 25 minutos. Dessa forma, a multidão de atletas se dispersa pelo percurso sem atropelos. “No fundo, não muito mais do que umas 300 pessoas estão preocupadas com performance. Nós temos uma espécie de onda também. O atleta informa o ritmo que pretende fazer a prova e damos pulseiras com cores diferentes para que os mais lentos não fiquem na frente dos mais rápidos. O problema é que a turma não respeita isso…”, diz Braga.
O assessor de imprensa da prova se refere aos “pelotões de ritmo” que também são utilizados nos grandes eventos. Na maioria deles, o atleta precisa informar o link de resultados de uma prova anterior feita no ritmo pretendido. E a organização checa, por amostragem, se o corredor está falando a verdade ou quer simplesmente largar na frente. Além disso, há uma fiscalização rigorosa para que cada atleta entre no espaço destinado ao seu ritmo. Na São Silvestre, isso não acontece. E mesmo se o pelotão de ritmo beirasse a perfeição, o congestionamento seguiria acontecendo. Boston, Nova York, Berlim, Tóquio, Paris, Londres já descobriram que sem largadas em ondas é impossível assegurar a fluência da corrida.
O paralelo da São Silvestre com grandes maratonas mundo afora não é um despropósito. “Mesmo acontecendo em uma data inconveniente para a maioria das famílias, todo mundo quer participar. É um caso único na América do Sul”, observa o consultor em marketing esportivo Cristiano Coelho que já foi gerente global da Nike em Running. No Brasil, de fato, não há uma grande maratona, mas a São Silvestre assume esse papel. É uma prova com tradição, 93 anos de história, o povo vai à rua e torce mesmo por anônimos. “O mais difícil para um evento é ele ser conhecido, relevante, desejado. A São Silvestre é tudo isso, mas precisa proporcionar também uma boa experiência. E não há corredor que não se irrite quando não consegue correr e precisa caminhar”, diz Andrea Longhi, criadora do Circuito Golden Four de meias maratonas pelo Brasil.
A prova toca fundo corredores e mesmo quem nunca experimentou um trote. Quem não está em São Paulo liga a televisão, enquanto o peru do dia 31 está no forno. E aí torce pelo João, pelo José João, pelo Émerson, pelo Marilson da vez. Quem corre compreende rapidamente o simbolismo. A SS representa a virada do ano e a conciliação do cidadão com a sua cidade. A cidade dos carros se rende aos pedestres. O percurso da prova é um componente do simbolismo com largada e chegada na Avenida Paulista, a avenida mas paulista da metrópole. Quem já correu sabe como é emocionante vencer a estafante subida da avenida Brigadeiro Luís Antônio, virar na Paulista, receber o incentivo de desconhecidos e ganhar um pulmão novo. Nesse momento, não há como não acreditar que o próximo ano será também de superação e vitórias.”