O auxílio-moradia e a ciclofaixa
São Paulo, manhã de domingo. Dia em que as bicicletas marcam o gol de honra no violento jogo urbano das avenidas. O resultado desse confronto é previsível, os carros vencem sempre de goleada, sabemos. Mas, na manhã de domingo, tem golaço das bikes. A cidade, por algumas horas, é prioridade delas. As ciclofaixas convidam o cidadão a se exercitar. E, na cidade dos carros, temos um fugaz domínio dos veículos de duas rodas não motorizados.
Eis que surgem então em uma das ciclovias da Zona Sul vários corredores fazendo seu treino matinal. Faz sol, mas a temperatura está amena, perfeita para o trote. Tudo parece fazer sentido a não ser o fato de que a turma está correndo em um lugar reservado naquele momento para bicicletas. Exclusivamente para bicicletas! Está expresso nas placas, todo mundo sabe que é assim. Os corredores, porém, seguem, altivos, em seu treino, acham que não é com eles. Estão atrapalhando o tráfego de bicicletas, oferecendo riscos em uma ciclovia que, aos poucos vai ficando mais povoada.
O corredor acha que tem esse direito. Presume que a cidade e aquele espaço também são dele. Mesmo com as placas dizendo que não, o corredor acha que a ciclofaixa pode, sim, ter gente correndo. Afinal a metrópole é cruel, tudo é difícil, falta espaço, justificativas não faltam.
É aí que entramos no auxilio-moradia dos juizes brasileiros. Um complemento salarial que foi criado, em teoria, para resolver o problema de moradia de uma classe que costuma pingar por muitas cidades no decorrer da carreira. Com o tempo, o auxilio, que deveria ser usado apenas pelos “sem-casa”, foi incorporado como um “direito” dos que possuem imóvel próprio. No racional dos magistrados, o “entendimento” é que a verba ajuda a corrigir uma distorção no reajuste dos salários (como se o problema fosse apenas deles…). O fato é que, em nome de uma distorção, eles estão confortáveis para defender outra. O juiz, que deveria ser o guardião da… justiça, é um tanto flexível para defender o seu.
O corredor na ciclofaixa é uma espécie de juiz com o auxilio-moradia. O direito individual (ou classista, no caso) se sobrepõe à regra geral. O corredor e o magistrado, de uma certa forma, tentam fazer justiça com as próprias mãos. Ou com os próprios pés, no caso.