Cérebro trapaceiro

Sérgio Xavier

Se tivesse que levar meia dúzia de palavras para uma ilha deserta, uma delas seria “trapaceiro”. Vá até o espelho do banheiro e repita algumas vezes a expressão “seu trapaceiro, seu trapaceiro”. Perceba musicalidade do vocábulo. O “tra”nasce com a língua entre os dentes, o “pa” requer uma inflada na bochecha, o “cei” se assemelha a uma sibilado de serpente venenosa e o “ro” vem na sequência com um biquinho. A palavra perfeita para fonoaudiólogos corrigirem erros de seus pacientes.

Adoro também as possibilidades semânticas de trapaceiro. É uma espécie de leite condensado, entra nas receitas mais variadas. Cabe muito bem para aquele cafajeste (outra palavra sonora) da concessionária que oferece a metade do valor pelo nosso carro, tratado com tanto carinho nos últimos anos. Fica perfeita para codificar 98% dos habitantes do nosso Congresso, é exata para os nossos pequenos, quando eles nos surram nas partidas de memória (como eles sabem que o segundo quadradinho do palhaço era justamente o primeiro da terceira fileira?).

Como vocês podem perceber, acabei me perdendo em divagações. Ia falar sobre as trapaças do cérebro dos corredores. Um desses truques, tão manjado quanto eficiente, é a “fixação de objetivos múltiplos”. Funciona mais ou menos assim: como se fôssemos uma grande repartição pública, o cérebro envia pedido em duas vias carbonadas para o senhor de blazer xadrez da “central de objetivos”. O documento que ali chega deve ser analisado com rigor pelo burocrata. Se estiver dentro dos conformes, ele usará seu velho carimbo na almofadinha de tinta e golpeará com energia o ofício. O contínuo com a camisa do Corinthians passará por ali, pegará o papel e seguirá para as próximas etapas. Começará pelo andar do pulmão. Ao deixar o documento na mesa do diretor do órgão, verá a reação: dez quilômetros no domingo em 54 minutos? “Verei o que posso fazer.”

O contínuo corintiano esperará a assinatura do pulmão e seguirá a sua peregrinação, indo para o “departamento de pernas”. O encarregado balança a cabeça e diz: “55 minutos, e já está bom demais! Esse pessoal está sempre forçando, não nos dá o voucher da musculação e ainda quer moleza”. Assinará mesmo assim, sacudindo a cabeça em sinal de desaprovação.

A cópia do objetivo desabará também na mesa do responsável pelo aparelho digestivo. Outro reclamão. “Já estou vendo tudo. Na noite do sábado, aquele copinho de cerveja vai virar quatro latinhas. Tomará um café apressado, criará uma azia danada por aqui e ainda quer desempenho? É brincadeira…” Rogará uma praga para o time do contínuo e assinará o papel.

Por fim, e por ironia, a cópia chegará ao próprio cérebro, o arquiteto de tudo. Ele ajustará os óculos de leitura sobre o nariz, colocará os pés sobre a mesa, lerá tudo e assinará o que planejou. É que o cérebro exerce dupla função. Trabalha no setor de planejamento e faz um bico na área de execução. No domingo, por exemplo, fará hora extra e estará administrando a corrida, dosará ritmos, fará com que tudo aconteça como o planejado no papel.

Certo, mas cadê a trapaça nessa história? Bem, aí está a genialidade do cérebro. Já conhecendo os meandros dessa organização e perfeita que é o corpo humano, sabe como tirar o melhor de cada um. Ao invés de traçar um único objetivo, apresenta logo uns três ou quatro. Para corrida de domingo, por exemplo, escreveu assim:
Objetivo mínimo: terminar a prova se caminhar.
Objetivo dois: acabar antes do Palhares do almoxarifado.
Objetivo três: fechar abaixo da marca redonda de 55 minutos.
Objetivo quatro: cravar 54 minutos e bater o recorde pessoal.

Ardiloso, o cérebro sabe como funciona esse povo que só reclama. Se escreve apenas o objetivo real, que é o quarto, o pessoal vê a trabalheira que daria, faz corpo mole e nada feito. Por isso, traça metas intermediárias, já sabendo que no calor da prova todo mundo fica disposto a dar um pouco mais. Outra vantagem dos objetivos múltiplos é saber que eles previnem depressões futuras. É aquela história de quermesse: o primeiro prêmio dá uma bicicleta, o segundo, o rádio-relógio, e bonezinho para todos os dez primeiros. Mesmo perdendo o grande prêmio, o sujeito volta pra casa se sentindo um vencedor com o bonezinho. O cérebro é ou não é um trapaceiro?