Você me representa, Yuki

Foi como Gustavo Kuerten surgindo do nada pra ganhar Roland Garros. Foi como o minúsculo Leicester vencendo um Campeonato Inglês que é dominado por três ou quatro clubes bilionários. Quer saber? Não é nada disso. Não há paralelos. A façanha do japonês Yuki Kawauchi não encontra qualquer elemento de comparação.

O mundo das grandes maratonas está pequeno hoje em dia. Cabe todo em dois únicos países, Quênia e Etiópia. Eles e elas ganham todas. Ou com seus passaportes originais ou com o documento do país que se naturalizaram. Kawauchi subverteu isso e espantou o planeta. Nunca antes um amador fez o que ele fez. O japonês é administrador de uma escola em Saitama, no Japão. Treina apenas uma vez por dia. De vez em quando, corre fantasiado de panda. Sua planilha é estranha, pra dizer o mínimo. Corre em um ritmo confortável (12 km/h) cinco vezes por semana. Em um único dia, faz treinos intervalado de velocidade. No sétimo dia, encara subidas e descidas em trilhas. Seu volume semanal é alto para amadores (150 km semanais) e baixo para atletas de elite.

A estranha planilha semanal de Kawauchi

 

Pois Yuki Kawauchi venceu a principal maratona do mundo. Boston, em um dia congelante, se rendeu ao ímpeto do japonês maluco que corre balançando os braços e desperdiçando energia. Chovia, fazia frio e ventava forte. A umidade do ar ficava perto de 100%, a turma literalmente respirava água. Kawauchi já havia vencido maratonas menores e tinha um respeitabilíssimo 2h08min no currículo. Era um fenômeno antes de a prova começar. Mas, quando Boston terminou, já se tornara lenda. Ele correu com nove atletas mais rápidos e campeões. Era quase uma certeza que um africano venceria a prova. Talvez um americano, vá lá. Não um japonês, jamais um amador.

Yuki Kawauchi fez uma prova tão doida quanto doída. Largou feito um animal desembestado. No primeiro quilômetro, em descida, tascou 2min46. Suicida ou débil mental? Depois foi ultrapassado, claro, pelo queniano Geoffrey Kirui, vencedor do ano passado, que abriu um minuto e meio de vantagem. O japonês não desistiu, se manteve na prova, suportando sabe-se lá quantas dores. A alta umidade e o vento contra tornaram a prova lenta, todos corriam menos do que de costume. Kawauchi percebeu que o líder tinha problemas e foi para cima. Ultrapassou o queniano no final e o venceu. Chamá-lo de zebra é pouco. Amadores não ganham de profissionais em grandes provas que rendem grana pesada e prestígio.

Boston completou 122 anos de vida. Lá já se viu de tudo. Um trem interrompendo a prova, grandes campeões, duelos ao sol, mulheres desafiando a soberba masculina, calorão e mortes, neve e resiliência, recordes soprados ao vento, bombas e solidariedade. Nunca se tinha visto o amadorismo vencer o profissionalismo. Yuki Kawauchi é, de certa forma, como qualquer um de nós. Um apaixonado pela corrida que arruma tempo para treinar antes ou depois da jornada de trabalho. Ele nos representa.