Nova York sem apagão

Sérgio Xavier

Já escrevi sobre isso, o tema é mesmo fascinante. Primeiro corríamos prestando atenção nos minutos e segundos. Era o relógio no pulso e as pernas fazendo força para irem mais rápido. Depois, nos ensinaram que era preciso ficar de olho nas batidas do coração. Os frequencímetros passaram a balizar nossas provas e treinos. Pois a última “moda” da corrida é se guiar pela potência. Nada de minutos por quilômetros, batidas por minuto do coração, a conversa passa ser em watts de potência.

Quem me apresentou ao assunto foi o médico mineiro Marcos Cruvinel. Além de ótimo amador, capaz de maratonas abaixo de 3 horas, Cruvinel é um estudioso. Curioso de tudo. Sempre procurando melhorar sua performance, pesquisou, treinou e correu sua primeira maratona sem prestar atenção na velocidade. Planejou a Maratona de Nova York no domingo passado em watts. Ele mesmo conta essa incrível experiência:

Não importa se é a primeira ou a centésima. Tampouco se o seu objetivo é apenas cruzar a linha de chegada antes do tempo limite ou obter um tempo específico. Como quarenta e dois quilômetros é quilômetro pra chuchu, ao alinhar na largada, todo maratonista precisa ter um plano. Não há como largar correndo como se não houvesse o quilômetro 42. Não há como largar passeando como se não houvesse um relógio na linha de chegada.

Pensar essa estratégia de prova sempre foi algo que me tirou da zona de conforto. Largar rápido demais é pagar um preço muito alto no final. Se largar devagar demais, não tem como diminuir o prejuízo depois. Mas o que é rápido demais? O que seria muito devagar? Confiar na sensação de esforço nunca me convenceu. No início, tudo são flores, no final, é tudo espinho. Conversas e mais conversas com treinador e amigos. Leitura de vários textos em revistas, blogs e sites. Mas, principalmente, depois de quebrar muito a cara, cheguei a um método que se mostrou eficaz. Primeiro passo: estabelecer o tempo alvo para prova baseado nos treinos realizados. O segundo é simples de falar, difícil de executar. Correr no ritmo desejado do inicio ao fim. O mais regular possível. Foi assim, um olho no relógio e outro no asfalto, que alcancei meus objetivos nas maratonas de Chicago, Buenos Aires e Amsterdam. Até que apareceu Boston.

O percurso, cuidadosamente elaborado pelo tinhoso, faz com que essa estratégia se transforme num plano do Cebolinha para capturar o Sansão das mãos da Mônica. Correr em qual ritmo nas descidas? Qual esforço fazer nas subidas? Larguei duas vezes em Boston cheio de dúvidas. Foi tentando achar respostas para este dilema que trombei, sem querer, com um medidor de potência para o corredor. Instrumento habitual ao ciclista, está sendo introduzido ao corredor nos últimos tempos.

Numa ultra simplificação, o que ele faz é quantificar seu esforço. O resultado aparece na tela do seu relógio em watts. No plano, você faz um esforço para correr a determinada velocidade. Numa subida, você fará mais esforço para correr na mesma velocidade. A ideia é se basear não mais na velocidade, e sim na potência. O sujeito determina, baseado nos treinos, qual potência alvo para prova, vai lá e tenta correr naquela potência o mais regular possível.

Adquiri o bichinho e passei a treinar com ele. Com treinos, treinos e mais treinos feitos sempre de olho no ritmo, foi necessário tirar essa informação da tela do relógio. Pronto, agora não sabia mais em qual ritmo estava correndo. Só a potência que estava sendo gerada. E assim foi por um ano e meio, tempo que separou a Maratona de Boston 2017 da Maratona de Nova York 2018.

Desembarquei em Nova York com uma estratégia em mente, iria correr a determinados watts da largada a chegada. Pensava em 255 watts de média. Na feira da maratona, dei uma sorte e bati um papo com um dos diretores técnicos do Stryd, o medidor de potência que uso. Contei a ele meu plano de prova, ele deu uma olhada nos meus treinos e falou: You’re not gonna make it. Em tradução bem livre, não vai rolar, parceiro.

Depois de um susto inicial, ouvi as explicações. Meu plano estaria ótimo caso a prova fosse plana. A demanda muscular nas subidas e descidas de Nova York gera um desgaste que cobra seu preço no final. Ele sugeriu então que eu ajustasse para baixo meu alvo, talvez em 250 watts.

No quatro de novembro, um dia perfeito para correr, lá fui eu. Um olho no relógio, outro no asfalto. Só que desta vez o relógio só me mostrava duas informações, potência e tempo. No início foi frustrante, todo mundo me passando. Tinha a nítida sensação que poderia estar correndo bem mais rápido do que estava. Veio a marca da meia maratona e com ela a segunda das quatro pontes que castigam na Maratona de NY. Um pouco mais adiante, outra ponte. Não demorou muito e o que era fácil foi ficando cada fez mais difícil, até ficar dificílimo. Aconteceu justamente o que o boca maldita do diretor previu: fadiga muscular.

Não fosse ter ajustado o plano e não fosse a paciência na primeira metade, teria quebrado miseravelmente. Ao final, cruzei a linha de chegada com aquela sensação maravilhosa de ter feito o meu melhor para aquele dia. Nem 1 watt a mais, nem 1 watt a menos.

Meu amigo médico Marcos Cruvinel completou a Maratona de Nova York em 3h06 minutos. O medidor de potência registrou 247,3 watts de média, praticamente o planejado. Quem conhece o complicado percurso sabe que 3h06min em Nova York representam uma prova abaixo de 3 horas em qualquer maratona plana como Berlim ou Chicago. Sim, deu certo, muito certo.